O legado de Guerra Junqueiro, ou a evocação da Eternidade
Apresentação
A reflexão que desenvolvemos apoia-se na matéria referente à morte de Guerra Junqueiro, difundida pela imprensa. Nascido em 1850, em Freixo de Espada à Cinta, o desaparecimento, ocorrido no dia 7 de julho de 1923, em Lisboa, resultado de doença prolongada, foi mote para um sentido tributo ao seu talento e audácia, manifesto através dos louvores à vasta obra legada. Oriundos da pena de um amplo leque de autores, que incluiu nomes consagrados da vida cultural, modelaram as diferentes expressões de um notável trabalho – épico, lírico, satírico, devastador, este, dirigido, em particular, ao campo da religião e ao da política. Paralelamente, foram descritas aos leitores as solenes cerimónias fúnebres, honrarias que o Poeta dispensava, tal como registam as últimas vontades. Traduziram, porém, a correta interpretação do seu ateísmo e a emotiva homenagem nacional de que foi alvo. Com Junqueiro extinguiu-se o grupo Vencidos da Vida, composto pelos maiores vultos intelectuais de então e que defendeu, durante as três últimas décadas do século XIX, a profunda reforma dos quadrantes vitais do país.
Em 1966, o corpo de Guerra Junqueiro foi trasladado para o Panteão Nacional.
Adília Fernandes
Historiadora; investigadora do CITCEM-UPorto
Relações de amizade entre Guerra Junqueiro e Luís de Magalhães
Terra da Maia – local de vilegiatura
Muitos foram os eruditos que aproveitaram os bons ares e as boas águas da Maia para se recrearem. A Terra da Maia, onde a Quinta do Mosteiro se situa, era local privilegiado pela burguesia abastada portuense. Vinham a ares, expressão que ainda persiste na linguagem da Maia.
Este espaço maiato, de rara beleza, era local de encontros literários, dada a teia de amizade que Luís de Magalhães estabelecia com intelectuais do seu tempo: Eça de Queirós, Antero de Quental, Oliveira Martins, Magalhães Lima, Alberto Sampaio, António Feijó, Guerra Junqueiro e muitos outros.
Guerra Junqueiro é ainda hoje recordado pelos familiares de Luís de Magalhães que habitavam na Quinta.
Particularizem-se as relações de amizade entre Luís de Magalhães e Guerra Junqueiro.
Tiveram grande amizade e cumplicidade, em situações diversas.
Em Guerra Junqueiro (Campo Santo), [1]p. 231, Luís de Magalhães dá-nos a conhecer alguns estados de espírito de Junqueiro, em confidências, certamente únicas, e que nos ajuda a compreender todas as preocupações e “torturas íntimas ”, na parte final da vida do autor.
E havendo sido o último confidente das suas amarguras, das suas torturas íntimas, dos seus desenganos, dos seus escrúpulos de consciência (…)
Devo dizer, todavia, em seu louvor, que os últimos tempos da sua vida ele os empregou, buscando, nobremente, reparar injustiças, confessando e renegando erros. Numa nota das suas Prosas Diversas, publicadas em 1921 repudiou, formalmente A Velhice do Padre Eterno, classificando-o de livro “mau e por vezes abominável”. E o seu derradeiro trabalho literário foi a preparação da 4ª edição da Pátria, na qual em amputações extensíssimas, ele cortou implacavelmente tudo o que havia de deprimente e ofensivo para o carácter pessoal das suas principais personagens, a começar pelo Rei.
Esse acto de consciência, como ele próprio o qualifica na nota que escreveu para ser inserta nessa edição nobilita singularmente a sua figura.[2]
A velhice do Padre Eterno
O excerto de carta que transcrevemos, endereçada pelo freixiense a luís de Magalhães, aquando da polémica publicação de: “A Velhice do Padre Eterno”, traduz a proximidade e a confiabilidade entre Luís de Magalhães e o autor da obra.
Logo que esta receba peço-lhe o obséquio de ir procurar o Leitão e dizer-lhe da minha parte que a Velhice do Reverendo Omnipotente não pode ser posta à venda no dia 20. A razão é simples. No dia 19 vou a Braga e daí para o Porto. Ora se o livro aparecesse no dia 18, arriscava-me a ir de Braga para a Eternidade com a cabeça partida por algum hissope.
Prometeu Libertado
Luís de Magalhães prefaciou a obra: “Prometeu Libertado”, um projeto literário que nasceu ainda na juventude de Junqueiro. Pede, então, a Luís de Magalhães que prefacie a obra e a publique.
(…) À morte de Guerra Junqueiro foi encontrado o manuscrito que ele levara consigo para Lisboa, como num condicillo de testamento literário, traçado as frases cuja reprodução autográfica antecede estas linhas em que eu me encarregaria de explicar[3]
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É um prefácio curioso, pela preocupação explicativa de factos que Luís de Magalhães julgaria necessários à compreensão do conteúdo da obra ou ainda pelo recurso à obra de Ésquilo: “Prometeu agrilhoado”.
“O testamento literário”, assim designação por Luís de Magalhães, foi publicado, em 1926.
A “Pátria” foi também reeditada por Luís de Magalhães.
Luís de Magalhães agradece, reconhecidamente, o apoio de Junqueiro, aquando da sua prisão (1919)
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Na designada “Monarquia do Norte”[1], em 1919, Luís de Magalhães, após a vitória dos republicanos é preso. Guerra Junqueiro é o amigo que não hesita em defender o amigo, apesar da perigosa e incerta situação política.
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Luís de Magalhães refere essa prova de amizade:
…uma última demonstração d’uma muito velha amizade que tão solícita, dedicada e carinhosa se me havia provado num lance político da minha vida em que eu ficara do lado dos vencidos e ele do dos vencedores.
Em jeito de conclusão, permito-me fazer algumas citações de Luís de Magalhães que, conhecendo, como poucos, a vida e obra de Guerra Junqueiro, nos permitem estabelecer a verdade da sua vida e obra.
A atração religiosa era, nele, profunda e não me surpreendem as disposições do seu espírito na hora extrema (…) Estou quase católico”, confessara-me. (…) Ao lado de Antero e de João de Deus, Guerra Junqueiro ficará representando as culminâncias máximas da poesia portuguesa na segunda metade do século XIX.E aí com esses se poderá contar entre os nossos grandes poetas de todos os tempos.[5]
Lourdes Graça
Guerra Junqueiro – Ele e os Outros
Abílio Manuel Guerra Junqueiro, grande poeta, cidadão ativo, homem atual, mesmo passados cem anos sobre a sua morte em 1923.
Republicano ainda antes da república, teve forte participação cívica, como por exemplo após 1910, na chamada Questão da Bandeira, apresentando um projeto próprio.
Desempenhou vários cargos públicos, com destaque para o de Ministro Plenipotenciário de Portugal na Suíça, e foi candidato a Presidente da República pelo Partido Republicano Evolucionista na que terá sido a sua última participação política.
Faleceu em Lisboa a 7 de julho de 1923. A sua morte, e as suas exéquias, foram momentos de grande exposição mediática (e de polémica).
Não cabe aqui tecer considerações profundas sobre a sua obra. Nem sempre igual em fulgor, e até, em alguns casos, em qualidade, reflete o perfil de uma vida complexa.
Da sua colaboração, em Coimbra, n’A Folha, dirigido pelo poeta João Penha, passando pela antimonárquica À Hespanha Livre, e pelo grande sucesso que foi A Morte de D. João, até aos trabalhos mais conhecidos, como A Velhice do Padre Eterno, vai uma vida com um percurso atribulado.
As questões religiosas, estão bem patentes nesta obra, onde Junqueiro censura violentamente a deturpação do ideal cristão primitivo, o fanatismo religioso, o ritualismo, o jesuitismo, as superstições obscurantistas e o Vaticano que apelida de “bordel da Igreja”.
A sua oposição à monarquia manifesta-se em poemas como Finis Patriae, Marcha do Ódio e Pátria, motivados pelo ultimato inglês, instigando nos seus leitores um sentimento de descrédito em relação ao sistema de governo em vigor.
Na parte final da vida, retira-se para Trás-os-Montes, dando um rumo distinto à sua orientação literária mais voltada para as suas origens, como atestam algumas das suas últimas obras: Os Simples, Oração ao Pão e Oração à Luz.
Personagem importante no percurso final de Junqueiro foi o Conselheiro Luiz de Magalhães. Interveio na publicação da Velhice do Padre Eterno, na reedição de A Pátria, prefaciou o Prometeu Libertado e foi o recetor do Testamento Literário de Junqueiro. Este, fez esforços para libertar Magalhães da prisão sequente ao fracasso da Monarquia do Norte e tentou amnistiar os revoltosos.
Quando, no dia seguinte, entrei em sua casa, as suas primeiras palavras foram estas:
«Pedi-lhe que aqui viesse para lhe dar o meu último abraço. Amanhã vou para Lisboa e lá acabarei. Não nos tornaremos a ver!»
Já próximo da morte, o poeta afirmará que algumas obras suas (nomeadamente A Velhice do Padre Eterno) eram obras da juventude, más, que não escreveria aos quarenta anos.
Na sua vida diversa, rica, polémica, nas suas denúncias sobre a religião, a política e a sociedade, nas suas intervenções cívicas, como a questão da Bandeira, o destino do seu cadáver após a sua morte, a luta contra a corrupção que abafava o país, Guerra Junqueiro foi – é – um homem atual.
José Augusto Maia Marques
[1] A obra “Campo Santo”, editada, 35 anos após a morte de Luís de Magalhães, é composta por grande quantidade de textos necrológicos do autor, publicados em diversos jornais, após a morte dos que lhe eram queridos.
[2] MAGALHÃES, Luís, Campo Santo, com prefácio de Joana Inês e Miranda de Andrade, Braga, Livraria Cruz, 1971, p. 231.
[4] Sobre o assunto, consultar: LOURDES GRACA, “Para a História da traulitânia, um voluntário da República na defesa de Mirandela, edição da C.M. Alfândega da Fé” (comemoração do 1º centenário da república), 2010
[5] Idem, ibidem.